27 de mai. de 2014

O MESTRE E O DISCÍPULO

Quando o grande místico sufi Hasan estava morrendo, um dos seus discípulos perguntou:
- Mestre, quem foi o teu mestre?
- Eu tive centenas de mestres – foi a resposta - Se tivesse que dizer o nome de todos eles, levaria meses, talvez anos, e mesmo assim ainda terminaria esquecendo alguns.
- Entretanto, não houve algum deles que marcou mais que outros?
Hassan pensou por um minuto, e disse:
- Na verdade, existiram três pessoas que me ensinaram coisas muito importantes.
“O primeiro foi um ladrão. Certa vez eu estava perdido no deserto, e só consegui chegar em casa muito tarde da noite. Havia deixado minha chave com o vizinho, mas não tinha coragem de acordá-lo aquela hora. Finalmente encontrei um homem, pedi ajuda, e ele abriu a fechadura num piscar de olhos.
“Fiquei muito impressionado, e implorei que me ensinasse a fazer aquilo. Ele me disse que vivia de roubar as outras pessoas, mas eu estava tão agradecido que convidei-o para dormir em minha casa.
“Ele ficou comigo por um mês. Toda noite saía e comentava: “Estou indo trabalhar; continue sua meditação e reze bastante.” Quando voltava, eu perguntava sempre se tinha conseguido alguma coisa. Ele invariavelmente me respondia: “Não consegui nada esta noite. Mas, se Deus quiser, amanhã tentarei de novo.”
“Era um homem contente, e nunca o vi ficar desesperado com a falta de resultados. Durante grande parte da minha vida, quando eu meditava e meditava sem que nada acontecesse, sem conseguir meu contacto com Deus, eu me lembrava das palavras do ladrão – “não consegui nada esta noite, mas, se Deus quiser, amanhã tentarei de novo”. Isso me deu forças para seguir adiante.
- Quem foi a segunda pessoa?
- Foi um cachorro. Eu estava indo em direção ao rio, para beber um pouco de água, quando o cachorro apareceu. Ele também estava com sede. Mas, quando chegou perto da água, viu outro cachorro ali – que não era mais que sua própria imagem refletida.
“Ficou com medo, afastou-se, latiu, fez tudo para que afastar o outro cachorro. Nada aconteceu, é claro. Finalmente, porque sua sede era imensa, resolveu enfrentar a situação e atirou-se dentro do rio; neste momento a imagem sumiu.
Hassan deu uma pausa, e continuou:
- Finalmente, meu terceiro mestre foi uma criança. Ela caminhava em direção à mesquita, com uma vela acesa na mão. Eu perguntei: “Você mesmo acendeu esta vela?” O garoto disse que sim. Como fico preocupado com crianças brincando com chamas, insisti: “Menino, houve um momento em que esta vela esteve apagada. Você poderia me dizer de onde veio o fogo que a ilumina?”
“O garoto riu, apagou a vela, e me perguntou de volta: “E o senhor, pode me dizer para onde foi o fogo que estava aqui?”
“Neste momento eu entendi o quão estúpido sempre tinha sido. Quem acende a chama da sabedoria? Para onde ela vai? Compreendi que, igual aquela vela, o homem carrega por certos momentos no seu coração o fogo sagrado, mas nunca sabe onde ele foi aceso. A partir daí, comecei a comungar com tudo que me cercava – nuvens, arvores, rios e florestas, homens e mulheres. Tive milhares de mestres a minha vida inteira. Passei a confiar que a chama sempre estaria brilhando quando dela precisasse; fui um discípulo da vida, e ainda continuo sendo. Consegui aprender a aprender com as coisas mais simples e mais inesperadas, como as histórias que os pais contam para os seus filhos.


(Este belo conto, pertencente à tradição mística do Islã).

18 de mai. de 2014

PROCURA-SE UM AMIGO



"Não é precisa que seja HOMEM, basta ser HUMANO, basta ter sentimentos, basta ter coração. Deve compartilhar dores e alegrias, precisa saber falar e saber calar, sobretudo ouvir; tem que gostar de poesia, da madrugada, da música, de sol e de lua; deve ter um grande amor por alguém, então, sentir falta de não ter este amor; tem que saber guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso ser de primeira mão, nem é imprescindível ser de segunda; poder ter sido enganado; pode ter cometido faltas, não é preciso que seja puro nem de todo impuro, mas não dever ser vulgar. Tem que saber renunciar em favor de alguém. Deve ter um ideal na vida e no caso de não ter, deve sentir o imenso vazio que isto deixa.

tem que ter ressonâncias humanas; tem que ter vontade de ter integrar ao mundo e no caso de não ser realizado, este deve ser um de seus objetivos na vida, sendo seu principal objetivo, ser AMIGO. Deve sentir pena das pessoas que tiveram e perderam coisas queridas. Deve gostar de crianças. Tem que ser Dom Quixote sem contudo desprezar Sancho.

Procura-se um amigo para passear, gostar dos mesmos gostares, ouvir música, ler, não precisa ser HOMEM, mas ser HUMANO.

Procura-se um amigo que se entristeça com a separação, que fique comovido e com todo o coração deseje a nossa volta para breve, que se comova quando chamamos AMIGO.

procura-se um amigo para não enlouquecer; para se poder contar o que viu de belo de belo e de triste durante o dia; dos sustos, das tristezas e das alegrias.

Um amigo, que não fale de política; que saiba, conversar de coisas simples, do orvalho, da chuva e das recordações de infâncias e se diga porque tal coisa é assim; a quem se possa dizer coisas íntimas, e fazer perguntas íntimas.

Procura-se um AMIGO, que não tenha medo de apontar um defeito e quando o faça saiba como fazê-lo.

Procura-se um amigo para não viver no passado em busca de memória, que saiba dar esmolas a quem mereça, que nos bata no ombro sorrindo ou chorando, mas nos chame AMIGO".     

Vinicius de Moraes 

4 de mai. de 2014

A VIDA DO HOMEM

Xavier Marques

Deus criou o homem e disse-lhe:
-"Vai, serás o senhor da terra e o animal superior. Grandes trabalhos e surpresas te esperam mas de tudo triunfarás, se fizeres a tua parte. A tua felicidade depende muito do teu querer. Viverás 30 anos".
 
Deus criou o burro e disse-lhe:
-"Vais viver como escravo do homem, conduzi-lo e a todos os fardos que te puserem às costas. Serás bastante discreto e paciente para suportar, além da pesada carga as privações que te forem impostas durante as viagens. Viverás 50 anos".
 
-"Escravidão, cargas, privações e viver 50 anos... É muito, Senhor. Bastam -me 30.
 
Deus criou o cão e disse-lhe:
-"Vais ser o companheiro do homem, de quem guardarás sempre alerta a porta, servindo-o com inteira obediência, ainda que não recebas mais do que um osso para matar a fome. Sofrerás açoites, mas, humildade e fiel, tens que lamber a mão que te castiga. Viverás 30 anos.
 
O cão pensou e refugou:
-"Vigiar dia e noite, açoitado, padecer fome e viver trinta anos... Não, Senhor, quero apenas 10.
 
Deus criou o macaco e disse-lhe:
-"Vai, o teu ofício é alegrar o homem, saltando de galho em galho, ou atado a um cepo, procurarás, imitando-o o bom humor. Viverás 50 anos".
 
O macaco pestanejou e pediu:
-''Senhor, é demasiado para tão indigno mister. Basta-me viver trinta anos".
 
Tomando, então, a palavra, disse o homem:
-"vinte anos que o burro, não quis, vinte que o cão enjeitou, vinte que o macaco recusa, dai-mos, Senhor, que trinta anos é muito pouco para o rei dos animais.
 
-"Queres? respondeu o Criador. Viverás, assim noventa anos, mas com uma condição:
- Cumprirás, em tua vida, não só o teu destino, mas também o do burro, o do cão e o do macaco."
 
E assim o homem vive. Até os trinta, forte, corajoso, resistente, arrasta perigos e estorvos, luta com resolução, vence e dorme. É homem. Dos trinta aos cinquenta, tem família e trabalha sem repouso para sustentá-la. Cria os filhos, afadiga-se para educá-los e garantir-lhes o futuro. Sobre ele se acumulam os encargos. É burro.
 
Dos cinquenta aos setenta, está de sentinela à família. Dedicado e dócil, seu dever é defendê-la mas já não pode, contudo, fazer valer a sua vontade. Contrariado, humilha-se e obedece. É cão.
 
Dos setenta aos noventa, sem força curvo, trôpego e enrugado, vegeta a um canto, inútil e ridículo. Faz rir com sua gula, sua caduquice e sua própria rabugice. Sabe que não o tomam a sério, mas se resigna e tem gosto em ser palhaço das crianças. É o macaco.